domingo, 30 de dezembro de 2018

MORRE AGORA PARA TI MESMO


Tens suportado imensos, terríveis lamentos,
mas ainda vives debaixo de um véu
- pois morrer para ti mesmo
é o princípio fundamental
que ainda não abraçaste.

O teu sofrimento não terminará
antes que esta morte se complete:
não poderás alcançar o telhado
até subires ao topo da escada.

Como poderás sequer experienciar
o completo naufrágio da tua embarcação 
antes de a teres carregado
com a carga final?

Esta carga derradeira é essencial;
é uma estrela que invoca a noite
e faz naufragar o barco do erro.
Quando o barco da autoconsciência 
estiver finalmente partido e afundado,
tornar-se-á assim como um sol
inundando um céu sem nuvens. 

Mas, uma vez que ainda não estás morto,
a tua angústia prevalece.
Oh, candeia de Taraz¹, morre ao amanhecer!
O sol deste universo esconde-se 
até que todas as estrelas estejam ocultas. 

Não poderás vir a conhecer Deus,
apenas negar o que se Lhe opõe.
Desejas a revelação da Realidade? Escolhe a morte!
Não aquela que te arrasta para o túmulo,
mas a morte que é transformação
- para que enfim sejas Luz. 





Rumi (1207 - 1273)










(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999)









(1) Taraz é uma cidade situada no actual Cazaquistão. Diz contar com mais de dois mil anos de idade, tudo devido a uma fortaleza em ruínas que remonta ao tempo do domínio chinês na zona. O seu nome inicialmente seria Talas, embora na antiguidade a designação Taraz também surja amiúde, talvez por derivação. Desde então a cidade mudou várias vezes de nome, até se fixar na sua derivação antiga - mas apenas em 1997. Durante o século XIII, o tempo de vida de Rumi, a cidade, outrora próspera por ser um local de paragem da famosa Rota da Seda, encontrava-se em nítido declínio. 
Qual, portanto, a relevância desta referência no contexto do poema? O tradutor não a esclarece nem a nossa pesquisa foi muito produtiva nesse aspecto, embora se a referência for à cidade o seu significado e relevância torna-se muito diminuto. Acontece que em persa antigo, o dialecto em que Rumi escrevia, "taraz" é um adjectivo que poderá significar beleza ou harmonia. Existe uma referência a tal num poema da antiguidade, autoria de Nizami (1141 - 1209): "sham' i - taraz", traduzido por "bela ou harmoniosa candeia (ou vela)" (Metaphor and Imagery in Persian Poetry, Ali Asghar Seyed-Gohrab, Brill, Lieden - Boston, 2012 - Pág. 98). Assim sendo, tratar-se-á de um erro de tradução? Assumindo "Taraz" como nome ao invés de adjectivo? Sem criticar o trabalho realizado, há que admitir que assim nos parece, pelo que "candeia de Taraz" será assim "bela/harmoniosa candeia", significando, em contexto, uma referência ao próprio Homem. Para todos os efeitos, dada a incerteza, deixámos a versão portuguesa seguir o que na tradução inglesa se escreveu. 











(Fotografia de: Himalayan Institute)


sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Quatro poemas de autores da dinastia Tang


I. Ganso solitário ¹

Ganso solitário: não beberás, tampouco debicarás.
Respondes ao chamamento do voo, o bando ignora.
Quem terá pena dum retalho de sombra que está só?
Perdido de ti nas dobras de mil nuvens, ainda
ao alcance do olhar, observas quem toma a dianteira.
Os pesares aumentam, como se a voz fosse ainda audível.
E os corvos no mato, sem um ponto de sentido,
grasnando, clamando aos seus grosseiros semelhantes.  


Du Fu (712 - 770)




II. Rio nevado ²

Mil montanhas sem rastro de qualquer voo,
dez mil trilhos sem vestígio humano.
Um barco solitário, um velho de capa e chapéu de bambu
sozinho pescando a neve do gélido rio.


Liu Zongyuan (773 - 819) ³




III. Ancorando, de noite, na Ponte dos Áceres ⁴

A lua afunda-se, os corvos grasnam,
a geada congela o céu.
Os áceres do rio estremecem
no revérbero das lanternas.
O meu sono é inquieto.
Para além de Suzhou⁵, o templo da Montanha Fria.
Ecos de sinos vão chegando ao barco.
É meia-noite.


Zhang Ji (? - 780) ⁶




IV. Retiro no bosque de bambus

Sozinho no remoto bosque de bambus,
toco alaúde e assobio bem alto.
Nessas profundezas desconhecidas ao Homem
chega a lua - e comigo partilha a sua luz.



Wang Wei (701 - 761)







(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções para inglês de: I) David McGraw; II) Qiu Xiaolong, Dongbo, Kenneth Rexroth, David Hinton e Gary Snyder; III) Dongbo e Gil de Carvalho; IV) Dongbo.) 







(1) Embora o poema nos conceda uma imagem bela e ao mesmo tempo pungente, e ainda que seja provável basear-se numa cena real testemunhada pelo poeta, a sua construção sugere uma interpretação mais profunda. Numa primeira análise, o lamento que é transversal ao poema pode ser entendido como sendo o do próprio poeta, ele mesmo o cisne retratado, que triste e só vê o seu bando partir sem que o consiga alcançar (a velhice e a passagem do tempo.) Contudo, uma análise mais detalhada sugere que o poeta refere-se antes ao estado geral do seu país num momento de instabilidade política, sendo todo o poema uma alegoria da situação então vivida. Assim, o cisne é uma metáfora da grande dinastia Tang, expoente máximo da prosperidade económica e do florescimento cultural na China antiga, na época da composição a registar um vincado declínio. Seguindo esta ideia bastante bem fundamentada, os corvos que em contraposição ao cisne (preto vs. branco) aparecem no poema seriam a metáfora da decadência em si, trazida pelas forças emergentes no país. Embora a dinastia Tang só conhecesse o seu fim muito depois da morte de Du Fu, em 907, o poeta testemunharia o sangrento conflito conhecido por A Rebelião de An Lushan, em 755, pelo que provavelmente o poema terá sido escrito nessa altura (e em Kuizhou, onde viveu por quatro anos, já bastante debilitado fisicamente). Os corvos que grasnam para os seus grosseiros semelhantes podem perfeitamente ser o feliz retrato de todos os partidário de tal golpe, findado apenas em 763 - e Du Fu, como dissemos, o pobre cisne que ficou para trás, condenado a viver entre esses pouco desejáveis convivas. 


(2) Apesar de ser um poema muito breve, além de famoso, existem várias versões que, sem grande prejuízo para a essência global do texto, sugerem ideias distintas a respeito da belíssima imagem que o poema transmite. É, acima de tudo, um poema bastante visual, registado em pleno inverno, na melancolia da neve e do vazio dos caminhos. Exala uma solidão notável, e em todas as principais versões isso faz-se notar. A grande questão, aqui, prende-se com o último verso do poema, onde a maioria das traduções refere o velho homem, sozinho, a pescar na neve do gélido rio. Contudo, as traduções consultadas que são da autoria de indivíduos nascidos ou com raízes no oriente, oferecem uma pequena mudança que, no retrato geral, concede ao poema uma dimensão totalmente distinta. Ora, nessas é referido que o velho homem pesca a neve do gélido rio. Isto é, num dia tão frio, tão desprovido de vida, que peixe, afinal, se poderá pescar num rio coberto de neve? (E não gelo, curiosamente, em todas surge a palavra "snow".) Assim, a ideia deixada é a de um barco solitário, um velho homem com a sua cana e um fio frágil estendido às águas, quase como num velho hábito, num cumprir de ritual da mais alta importância... pescando apenas a neve solta pelo rio. Dado que os autores orientais deixaram esta imagem nas suas traduções, por considerarmos existir uma maior facilidade na ligação às origens do poema, também ele oriental, apresentámos a sugestão de tais figuras. Resta acrescentar que, embora não haja total certeza, o rio referido talvez seja o Xiao ou o Xiang, algures no sul de Hunan, onde o poeta passou o primeiro dos seus dois exílios. 


(3) Escritor, poeta e político nascido na actual Yongji, em Shanxi. Foi um dos fundadores do Movimento Prosaico Clássico, pelo que não se estranha o facto de ter sido um dos melhores executantes da prosa chinesa da época - e não só. A sua carreira floresceu bastante na fase inicial, mas uma infeliz associação política levou-o a enfrentar dois exílios, primeiro para Yongzhou e depois para Liuzhou - onde viria a tornar-se governador. (Ainda hoje, nesta localidade, ergue-se um templo e pode-se visitar um parque que celebra a sua memória.) O exílio, apesar de tudo, trouxe a benesse do crescimento e desenvolvimento da actividade literária, exercida, além da já referida poesia e prosa genérica, ao nível da fábula e do ensaio - um dos seus mais notáveis exemplos aborda questões da filosofia confuciana, taoísta e budista. O poema que aqui se traduz é a sua mais emblemática obra, conhecido em toda a China e até no Japão. 


(4) Ainda existente nos dias de hoje, é possível encontrá-la na cidade de Suzhou - ela própria situada nas cercanias do famoso templo da Montanha Fria (Hanshan). 


(5) Situa-se no delta do rio Yangtzé, na província de Jiangsu. Foi fundada no ano de 514 a. C., e dada altura chegou a ser uma das dez maiores cidades do planeta. Berço da cultura Wu, ainda hoje é um largo centro económico e comercial com mais de quatro milhões de habitantes. 


(6) Pouco se conhece sobre este poeta nascido em Xiangyang, provavelmente em 712 ou 715. Devido a essa discrepância, e porque muitos preferem manter incerto a data do seu nascimento, optámos por apresentá-lo do mesmo modo. Sabe-se, contudo, que Zhang Ji passou nos exames imperiais, os jinshi, em 753, e desempenhou com sucesso o cargo de secretário do departamento de receitas do estado. Existem vários poemas que lhe têm sido erradamente creditados ao longo dos anos, o que só contribui para adensar a confusão em torno do quase esquecido poeta. Porém, graças à famosa antologia "Trezentos Poemas da Dinastia Tang", traduzidos para língua ocidental por Witter Bynner, o poema aqui apresentado chega até nós sem qualquer dúvida sobre a sua autoria. É, por isso, a obra mais famosa de Zhang Ji, valendo-lhe até uma estátua, ainda hoje existente, junto da famosa ponte dos áceres. Certos poetas japoneses parecem nutrir uma predilecção pelos seus poemas, já que devido ao seu estilo de composição muitas vezes os utilizam nos seus Shigin, uma tradicional forma de recitar poesia através do canto. 









terça-feira, 27 de novembro de 2018

AMOR RECÍPROCO


Quando os nossos mentores, e aqueles que estimamos, partem, desaparecendo para sempre, eles não ficam extintos. São como estrelas que se evolam na luz do Sol da Realidade. Eles existem pela sua essência, mas tornam-se invisíveis pelos seus atributos.

Este ser não tem fim. Se todos os mares do mundo fossem tinta, e todas as árvores de todas as florestas fossem penas, e todos os átomos da atmosfera fossem escribas, ainda assim não conseguiriam descrever as uniões e os reencontros das almas puras e divinas, bem como a reciprocidade do seu amor.







Rumi (1207 - 1273), 

in "Cartas".









(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999)
















terça-feira, 20 de novembro de 2018

Três poemas místicos de Lao Tsé


I.

O Tao¹ a que se dá um nome
não é o Tao eterno.
O não-nome é o seu verdadeiro nome.

O inominável é a origem do céu e da terra.
O nomear é a mãe de todos os seres.

Se nos esvaziarmos do desejo, vemos o mistério.
Se desejamos, vemos a manifestação das coisas.

Estas duas verdades emergem de uma única origem,
e as duas são um mistério.

Quando o mistério se mistura com o mistério,
abre-se a porta para o desconhecido.


II.

O Tao é uma taça vazia;
quando se usa, não se enche.
Parece não ter fundo.
É como a fonte de todas as coisas.

Ele suaviza as arestas,
desata todos os nós,
atenua o brilho intenso,
reúne toda a poeira do mundo.

É um abismo escondido
mas sempre presente.

De quem é filho? Não sei.
Parece estar muito antes dos deuses.


III.

Trinta raios convergem no eixo,
mas é o vazio que há no centro
que dá utilidade à roda.

O barro é moldado para fazer vasos,
mas é o vazio que há no seu interior
que lhe dá utilidade.

Colocam-se portas e janelas nas paredes,
mas o espaço interior vazio é que é útil.

O ser torna acessível,
mas é o não-ser que é útil.





Lao Tsé (séc. VI a.C. - ?)








(Tradução de Joaquim Palma, in "Tao Te Ching - O Livro do Caminho e da Sabedoria", Editorial Presença, Julho de 2010).









(1) Tao é a palavra chinesa para "caminho". No contexto deste poema, assume obviamente conotações mais filosóficas e, se quisermos, até místicas.










(Escultura em pedra de Lao Tsé no sopé do monte Qingyuan, a norte de Quanzhou, na China)




segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Quatro poemas de Du Fu


I. Luar nocturno

A lua de Fuzhou¹ está cheia, esta noite.
Sozinha no teu quarto a contemplas.
Em Chang'an² sofro pelos nossos filhos,
que sentem a falta do pai.
Consigo imaginar os seus caracóis húmidos
e os seus braços de jade frios como cristal.
Oh, quando estaremos juntos de novo?
- luar cintilante reflectido
em trilhos de lágrimas secas.


II. Anotando os meus pensamentos enquanto viajo de noite

Uma orla de finos juncos na brisa suave,
um grande barco sozinho na noite.
As estrelas suspensas sobre a árida terra,
a lua nascendo do rio Yangtze³.
Como escrever alguma vez me levaria à fama?
Desisti do meu cargo pela doença e idade.
Um errante solitário. Que sou senão
uma gaivota entre o céu e a terra?


III. Lua cheia

A lua solitária defronte da minha torre derrama-se;
o frio Jiang⁴ agita as cortinas da noite.
Inclinada sobre as vagas, o seu oiro não tem descanso;
cintilando na minha esteira, a sua seda suaviza-se.
Ainda não minguou - as montanhas vazias estão silentes;
permanece bem alto, e as constelações esmorecem.
No meu velho jardim, pinheiros e cássias florescem
- oferecendo um brilho puro por vários quilómetros. 


IV. Último dia de outono, ano de 767

O meu tempo de vagabundo tarda em findar,
o outono de pesares está a um crepúsculo de terminar.
Miasmas pairam pelos domínios do Mestre Kui⁵;
a geada permanece fina no palácio do Rei Chu⁶.
Em tons de esmeralda, ervas rivalizam com brumas veladas;
em tons de carmesim, flores suportam folhas geladas.
Ano após ano, uma ligeira sensação de queda agitada.
Nada é como era na minha velha casa.





Du Fu (712 - 770)









(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Dongbo (I), Bill Porter (II) e David McCraw (III e IV)).











(1) Fuzhou é uma cidade cuja fundação remonta ao século II a. C., embora só no século VI da nossa era tenha ficado sob administração chinesa. Situa-se a cerca de 40 km da costa, no delta do rio Min, e actualmente é a capital da província de Fujian. 

(2) Trata-se da cidade que por mais de dez dinastias foi a capital chinesa. Actualmente designada por Xian, chegou a ser a cidade mais populosa do mundo, um exemplo de riqueza e civismo - situada no fim da famosa rota da seda. 
Embora não fosse nativo de lá, Du Fu tinha fortes raízes familiares nessa cidade, sendo uma das suas predilecções. 

(3) Yangtzé, ou Rio Azul, é o maior rio da Ásia. Nasce numa região montanhosa do Tibete e percorre mais de 6000 km para desaguar no mar da China oriental. Foi neste rio, a bordo de um barco, que Du Fu faleceu. Tinha então 58 anos e um historial de imensas doenças debilitantes. 

(4) O antigo nome de um outro rio, presumivelmente o rio Wei, situado na província de Shaanxi. 

(5) É possível que se refira ao Kui da mitologia chinesa, um demónio das montanhas, de uma só perna, a quem se atribui a criação da música e da dança. Portanto, os domínios do mestre Kui seriam, assim, as montanhas onde ele mitologicamente habita - na altura da criação do poema cobertas de neblinas estranhas. 

(6) Decerto uma referência ao Estado de Chu, que se instaurou durante a dinastia Zhou e durou de 1030 a 223 a.C.. Talvez o poeta somente visse as ruínas de tal palácio, mas sabe-se que o poema foi escrito durante os quatro anos que passou em Fengjie, distrito de Chongquing, região essa que esteve no domínio do dito Estado - o que suporta a nossa suposição. Os invernos rigorosos do lugar, repletos de chuva e humidade, juntamente com as parcas condições de higiene e habitação, tornavam Fengjie, bem perto das famosas Três Gargantas, um local a evitar. 








(Fengjie, descendo o rio Yangtzé)








quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Seis Tanka de Izumi Shikibu (Parte I)


I.

Deitada e sozinha
de cabelo negro solto
e emaranhado,
sinto desejo daquele
que primeiro o veio tocar. ¹


II.

Vem já sem demora - 
assim que estas flores abrirem,
logo irão cair.
Esta vida é como o brilho
do orvalho sobre as flores. ²


III.

As Estrelas Tanabata³ - 
como eu invejo a certeza
do seu encontro anual;
neste mundo há uma mulher
que de amor nada prevê.


IV.

Consumi o corpo
a desejar o regresso
do que não voltou.
É agora um vale profundo
o que foi meu coração.


V.

De que vale gostar 
da vida na Primavera?
Suas flores só são 
as algemas que nos prendem
a este mundo daqui. ⁴


VI.

Ao passar dos anos
habituei-me à tristeza:
não houve uma Primavera
que eu não deixasse com pena,
junto com as suas flores. 





Izumi Shikibu (974? - 1034?) ⁵








(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das versões de Luísa Freire in "O Japão no Feminino, Volume I, Tanka - Séculos IX e XI", Assírio & Alvim, 2007)









(1) Poderá parecer estranho, por tão leve e inocente ser, mas a referência ao «cabelo negro solto / e emaranhado» constitui uma das primeiras indicações explícitas do corpo humano na poesia japonesa, até aí totalmente virada para as emoções e os contornos do mundo exterior. Por ser rara, há um atrevimento consciente e um indício de sensualidade na sua utilização.


(2) É comum na poesia de Shikibu encontrarmos referências ao pensamento budista. Esta, notando a efemeridade da vida material, que apenas deverá estimular um desapego às formas, é apenas mais um exemplo. Sublinhe-se, contudo, a subentendida urgência em viver e desfrutar de tudo aquilo que de duração é tão breve.


(3) Existe no Japão uma celebração com o mesmo nome. A Festa Tanabata celebra a poesia e o encontro dos amantes. Segundo uma velha lenda, é igualmente a noite em que no céu se juntam duas estrelas separadas por um castigo ancestral.


(4) É de novo visível os efeitos da filosofia budista, desta feita ao apontar os apegos materiais como prisões do mundano - o que impossibilitará o indivíduo de mergulhar em si mesmo e por si realizar a verdade que é. Existe neste tanka um distanciamento para com os fenómenos terrestres que lembra o papel de testemunha do mundo que é fomentado pela prática da meditação. Em todo o caso, não se exclui uma certa amargura do tom escolhido pela poetisa.


(5) Como outras mulheres de iguais períodos, e até mais remotos, não muito se sabe acerca da sua vida, havendo inclusive sérios desacordos sobre as datas de nascimento e morte, sendo apenas o mais consensual o número de anos que terá vivido: sessenta.
É claro que muito do que dizemos se deve à relativização da mulher e do seu papel na sociedade, mesmo que Shikibu tenha vivido no período Heian, um dos mais florescentes em termos artísticos. Um desses exemplos está no tipo de poemas exercido pelas mulheres, o Tanka, e na língua escolhida, o nativo japonês, já que era o chinês o dialecto de eleição dos letrados daquele tempo.
Shikibu foi filha do governador de Echizen e neta materna do governador de Etchu. É possível que por volta dos vinte anos tenha casado, sendo o seu marido, naturalmente, também um governador. E foi dele que obteve o seu primeiro nome, Izumi, pois correspondia à região que o esposo administrava. O seu complemento, Shikibu, surge graças à designação oficial do seu pai, "mestre de cerimónias". Ou seja, a mulher não possuía nome próprio em adulta, mas um conjunto composto pelos cargos do marido e do pai, o que indica bem o modo da sociedade nipónica de então a tratar. 
Shikibu teve uma filha que também viria a ser poetisa, mas protagonizaria um acto à época escandaloso: um divórcio pouco depois do nascimento da filha, tendo o marido falecido num curto período após o sucedido. Volta a casar, entra na corte e inicia o seu longo rol de paixões com que seria conhecida, algo que se reflecte naturalmente na poesia que ia compondo. Daqui se destaca um envolvimento com um enteado da imperatriz nipónica, Tametaka, a causa do seu segundo divórcio e o repúdio da família. Este depois viria a falecer e, mais tarde, irromperia um amor profundo pelo príncipe Atsumichi, irmão do anterior amante, que ficaria famoso para as gerações vindouras. Inclusive, em 2008 estreou em Génova uma peça de teatro retratando a imensa paixão entre o príncipe e a poetisa. Mas para grande desgosto seu Atsumichi viria a falecer com apenas vinte e sete anos. Durante esse período terá escrito mais de duzentos poemas.
Abandonou temporariamente a corte, mas voltaria pouco depois para retomar os seus famosos casos amorosos. Casaria de novo, agora com trinta e seis anos, e só então parte com o seu marido para a província, abandonando de vez as cortes imperiais.
Sabe-se ainda que assistiria à morte da sua filha. Terá falecido numa região campestre, provavelmente em maior isolamento. Apesar de toda a azáfama amorosa da sua vida, Shikibu era budista confessa, e até frequentava vários templos em regime de retiro. Não obstante o que se escreve, o certo é que perdurou na história como uma das mais talentosas poetisas japonesas de sempre, de estilo à época inovador e arrojado, bem servida de técnica e criatividade, o suficiente para justamente figurar entre os "Trinta e Seis Imortais da Poesia Medieval".








Izumi Shikibu por Komatsuken (Séc. XVIII)



sexta-feira, 14 de setembro de 2018

PROCURA O BAIRRO DA ALEGRIA


O Sultão Valad, filho do nosso mestre, contou: "Um dia, disse a meu pai: 'Os amigos dizem que sempre que te não vêem sentem dor e a sua alegria interior desaparece'. 
O meu pai respondeu: 'Aquele que se não sentir alegre na minha ausência não me terá conhecido de todo; aquele que realmente me conhece sente-se feliz sem mim - esse será inundado pelo que sou, pelo pensamento de mim com o meu pensamento'. 
E acrescentou: 'Sempre que, meu filho, te encontrares num estado de serenidade mística, sabe que esse estado significa eu em ti' ".
O Sultão concluiu: "É por isto que o meu pai costumava dizer: 'Quando me procurares, procura no Bairro da Alegria. / Nós somos os habitantes do Mundo da Felicidade' ".




(Shams ud-Din Ahmad) Aflaki em Manāqib ul-Ārifīn, uma biografia de Rumi (Séc. XIV).








(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999)



















terça-feira, 7 de agosto de 2018

TORNA-TE MAR


Todas as formas que observas têm a sua origem no invisível mundo divino. Assim, o que importa se a forma desaparecer? A sua origem estava no Eterno. 

Não te lamentes por um dia desvanecer cada forma que vês, cada verdade mística que escutas. A Fonte está sempre a deitar água. Nem a Fonte nem a água irão cessar. Para quê o lamento? O teu espírito é uma fonte: dele flui um rio atrás do outro. Coloca todo o teu pesar fora da mente para sempre, e continua a beber de tais águas. Nada temas. A água não tem fim.

Quando chegaste a este mundo de coisas criadas, uma escada foi colocada junto de ti para que o pudesses transcender. (...) Então terás terminado a vivência neste mundo e a tua casa será o mundo-luz do Paraíso. Vai para além disso (...). Mergulha no vasto Oceano, para que a gota - tu próprio - possa tornar-se um Mar.






Rumi (1207 - 1273)









(Versão, em excerto, de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Andrew Harvey in "Teachings of Rumi" - Shambhala Pub., 1999)














sábado, 7 de julho de 2018

Quatro poemas de Shih Te (II)

I.

Quando era jovem, estudei por muitos livros
e aprendi a via da espada.

Aos gritos cavalguei rumo à capital,
mas logo soube que as hostes bárbaras
já tinham sido expulsas...
Não mais havia lugar para heróis.

Portanto, vim para estes cumes cristados
e, deitado, comecei por escutar 
o fluir do riacho cristalino.

Eis o sonho de glória dum jovem:
macacos montados no dorso dum boi.¹


II.

A uma grande distância, 
vejo um grupo de homens na lama,
divertindo-se com qualquer coisa 
que na lama encontraram.

Quando os observo, ali no meio da lama,
o meu coração enche-se de tristezas.
Porque simpatizo com homens assim?

Por ainda conseguir recordar o gosto da lama. ²


III.

Gostarias de saber como apanhar um rato?
Não tomes como teu mentor um gato regalado.

Se desejares aprender sobre a natureza do mundo
não leias belos livros, pois a eles te apegarás.
A verdadeira jóia encontra-se num saco grosseiro;
a natureza de Buda repoisa em cabanas.

Aqueles que se agarram à aparências das coisas
nunca conseguem compreender.


IV.

O vinho da sabedoria é como água fresca e pura.
Dele bebe profundamente, pois tornar-te-á sóbrio.

Onde vivo, nas encostas da Montanha Fria,
nenhum tolo jamais me encontrará.
Vagueio por todos os vales sombrosos,
mas nunca na direcção que o mundo toma.
Sem preocupações, sem pesares,
sem vergonha, sem glória.





Shih Te (séc. IX)







(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa elaborada por J. P. Seaton em "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)









(1) Importa aqui esclarecer que a referência ao dito animal, o boi, parece receber influências de um dos mais antigos ditados da tradição zen: «Aquele que busca a iluminação assemelha-se a um homem montado num burro em busca de um burro». Sim, a troca dos animais é óbvia, mas a influência existe. Pois o grande mestre zen Kakuan, mais tarde, irá pegar neste velho ditame e alterar o protagonista nos seus famosos desenhos, datados do século XII. É então aqui que entra a figura do boi. Não por ter considerado o dito mais valioso ou superior ao burro, se bem que frisa a sua elegância, mas porque o próprio Buda teve, como um dos seus títulos mais antigos, o epíteto de "Rei Boi". Pode parecer estranho em português tal nome, também daí retirar um elogio deveras respeitoso, pelo que só poderá ser compreendido à luz do imaginário hindu daquela época e do extremo valor que os povos atribuíam a esse animal. O sábio taoísta Lao Tzè, por exemplo, foi diversas vezes retratado, séculos depois da sua morte, no dorso de tal exemplar.
O nosso poeta, contudo, é bastante cáustico na sua crítica. Pega na velha imagem e, no lugar do homem, coloca um macaco, nítido sinal depreciativo das mais baixas características humanas, de típica manifestação em consciências ainda adormecidas, isto é, que ignoram a sua verdadeira identidade. 
Chama-se por fim a atenção do leitor para o seguinte: os desenhos que servem de referência são do século XII e Shih Te terá vivido durante o século IX. Como pôde a influência ser possível afinal? Ou resultou de mera coincidência ou, como ainda se suspeita, Shih Te não foi um homem em particular mas sim vários que escreviam sob esse nome, prática essa que até pôde ter sido estendida aos séculos seguintes. É certo que muitos se refugiaram na famosa Montanha Fria em busca da iluminação ou apenas de um modo de vida mais simples, e muitos deixaram obra escrita, mesmo em cercas e muros, e alguns assinavam com um só nome comum, uma espécie de alcunha, comportamento típico em quem desejava esquecer a sua identidade social. Como oportunamente referimos, o mesmo problema aplica-se a Han Shan, o grande companheiro deste poeta. É provável que ambos tenham existido fisicamente, sim, mas também é possível de aceitar que outros homens que vieram para as montanhas depois deles tenham deixado poemas assinados com os mesmos nomes que ambos usaram em vida. Recordamos que Han Shan significa "Montanha Fria" e Shih Te apenas "Órfão". 



(2) Trata-se de um poema onde o autor admite claramente não ter ainda transcendido por completo os apelos do mundo ou, se preferir, os prazeres mundanos. A via espiritual que decidiu percorrer tem ainda, como se vê, tal obstáculo atravessado no trilho evolutivo: o apego às ilusões da matéria, personificadas aqui na figura da lama. Recorde-se, porém, a imagem do lótus, figura tão querida nas tradições budistas, uma flor que finca as raízes na lama e floresce sobre as águas. Por isso mesmo é tida como a perfeita metáfora para o ser humano e o seu percurso de despertar. 
Na versão apresentada do poema optou-se por manter a repetição da palavra "lama", tal qual o autor decidiu realizar no seu original.