sábado, 9 de setembro de 2017

Quatro poemas de Wang Fan-chih


I.

Vento e poeira entram 
por esta pequena cabana de palha.
Uma manta rasgada cobre a cama.
Se alguém vier, será convidado a entrar.
Posso fazer um monte de terra
para que nos sentemos.


II.

Muitos são os que desejam altos cargos.
Um trabalho que pague o suficiente
para encher duas tigelas de arroz
é o quanto me basta.
O fogo que brando aquece o pote do arroz
servirá também para aquecer meus pés.


III.

Sou pobre, então riem de mim.
Sou tão pobre que o riso alheio encanta-me.
Nenhum boi, nenhum cavalo,
nenhum bandido me preocupa.


IV.

Não desejo ser verdadeiramente rico,
não quero ser realmente pobre.
Deixa que o ontem se transforme em hoje
e que o hoje se torne no amanhã.
Se puderes aprender a nada querer,
talvez te tornes num homem verdadeiro.



Wang Fan-chih (séc. IX) ¹





(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções de J.P. Seaton, in "Cold Mountain Poems" - Shambhala Publications, 2009)







(1) Eis mais um caso de uma figura que, por exemplo, a par de Han Shan e Shih Te, já merecedores da nossa atenção neste espaço de partilha, permanece envolta numa aura obscura e misteriosa. Tanto que, à semelhança dos outros nomes citados, muitos consideram o seu trabalho não o resultado de uma só pessoa, mas de várias. 
Na verdade, como o "Montanha Fria" e o "Orfão", Wang Fan-chih é um nome cuja tradução se decifra por "Sr. Wang, um leigo budista", tão bizarro que de pronto se aceita trocar a designação de nome pela de título. Embora seja possível alguém naquele tempo ter assinado um conjunto de poemas sob tal epígrafe, o mais provável será tratar-se de uma personagem fictícia, cuja produção poética se incrementou devido à contribuição de um certo número anónimo de poetas, para o caso nos finais da dinastia Tang. (Num aparte, note-se que o termo traduzido por "leigo" não significará o usual "ignorante", mas sim um monge secular, isto é, que não realizou votos religiosos. Apesar da inclinação budista, notada em diversos poemas, cuja partilha prometemos desde já realizar em publicações futuras, a figura de Wang, fictícia ou não, era a de um leigo assumido.)
Portanto, como já se referiu, o poeta real ou ficcional terá vivido algures no século IX da nossa era, nos derradeiros anos da dinastia Tang, um período terrivelmente assolado pela guerra e graves crises sociais e económicas, com os surtos de peste e a escassez de alimentos à cabeça do rol. A pobreza que neste primeiro conjunto de poemas tanto parece ser apregoada como um meio de vivência simples e humilde, não era decerto difícil de atingir naqueles negros anos. 
Os poemas de Wang seriam bastante populares na época em causa. Contudo, menos de uma dúzia sobreviveram, e graças à sua inclusão, por parte doutros poetas distintos, nas suas pessoais colecções de favoritos. Muitos outros, apesar de tudo, lhe são atribuídos. E com segura razão. Mas somente seriam descobertos séculos depois, nos primórdios do século XX, quando se procedeu à abertura da biblioteca monástica de Tun-huang, encerrada por volta do ano 1000, quando as tropas chinesas estariam a perder o controlo daquela região. Mais de três pergaminhos se outorgam a Wang, cuja tradução para uma língua ocidental se deveu a Paul Demiéville, algures por 1950. Longo tempo permaneceram dormentes essas e outras obras de provavelmente igual valor...
Mas não nos equivoquemos. Nem tudo o que se atribui a Wang Fan-chih é de extraordinária qualidade. Os próprios temas e modos de construção dos textos tendem a divergir um pouco, apesar de em linha geral se manterem os preceitos tipicamente budistas, um tom irónico e por vezes até cruel, um negrume de sentido algo lúgubre e uma moralidade corrosiva para com falsidades de diversos calibres. Dentro desta mostra, os poemas seleccionados para esta primeira apresentação até que primam por uma serenidade bastante discreta, dado que até vernáculo era comummente anexado aos versos dos seus poemas. 
Considerando tudo isto, e somando as peculiares experiências da desafiante época em que viveu, as vozes que de Wang Fan-chih emanam são deveras singulares, um testemunho claro e crítico de um tempo cruel e obscuro, decerto merecedoras da nossa melhor atenção, não obstante a imensidão temporal que agora nos separa. 










2 comentários:

  1. Na simplicidade um verdeiro poema se cria, por que deveriam nascer poema de metáfora ricas, se tão singelas palavras brotam do homem que ri.

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    1. É uma boa pergunta, de facto... A mente humana gosta de empolar o simples, de adornar o que já é perfeito por si só. As coisas mais banais são sempre as mais profundas. Grato pela visita, Lígia. Beijos.

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