quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Cinco aforismos de R. Tagore (2)


I.

O homem é uma criança que nasceu, e o seu único poder é o poder de crescer.


II.

O peixe é silencioso na água; o animal é ruidoso em terra; o pássaro é cantor no ar.
Mas o homem tem em si o silêncio do mar, o alvoroço da terra e a música do ar.


III.

Deus encontra-se a si mesmo ao criar.


IV.

Como o encontro das gaivotas e das ondas, assim nos encontrámos e nos unimos.
As gaivotas voam afastando-se sempre, as ondas vão rebentar bem longe, e nós partimos. 


V.

A vida foi-nos dada e nós, dando-a, a merecemos.







Rabindranath Tagore (1861 - 1941)






(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Joaquim M. Palma in "A Asa e a Luz" (Assírio & Alvim, 2016)).










quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Quatro poemas japoneses dos períodos primitivo e Nara (até 794 d.C.) (*)


ELOGIO DO SAKÉ


Será que uma jóia
brilhando na noite
pode dar tanto prazer
como beber o saké
que afasta os nossos cuidados?


(Ôtomo no Tabito, 665 - 731)




ESQUECIMENTO


À charneca da primavera
eu fui
colher violetas:
era tão doce a charneca
que lá dormi toda a noite.


(Yamabe no Akahito, 700 - 736)




Mil anos, disseste,
quando os nossos corações se fundiram.
Olho para a mão que seguraste
e a dor é difícil de suportar.


(Sra. Heguri, ? - ?)




AS DUAS FLORAÇÕES


No jardim da primavera,
vermelha, exala o seu perfume
a flor do pessegueiro:
e na vereda que ela ilumina,
uma rapariga imóvel.


(Ôtomo no Yakamochi, 718 - 785)






(Traduções de Luís Pignatelli, in "A Pedra-que-mata, Poesia Japonesa" - Língua morta, 2016)




(*) É bem provável que as origens da poesia japonesa se percam no tempo, embora a mais antiga referência sua date apenas do século VIII da nossa era. Se tomarmos o caso da poesia chinesa, por exemplo, onde subsistem trabalhos datados de um tempo antes de Cristo, podemos concluir que a obra dos seus vizinhos não possui, em termos escritos, uma antiguidade propriamente impressionante. No entanto, crê-se que essa primeira obra, o Kojiki, que compila pedaços da história japonesa bem como da sua peculiar mitologia, contém trabalhos que por gerações terão sido transmitidos por via oral. Tal terá acontecido não graças ao analfabetismo dos seus transmissores, mas por se remeterem a um tempo anterior ao uso da própria escrita. O waka, ou poema, mais antigo que se conhece encontra-se, como é óbvio, registado nesse livro, cuja autoria é atribuída a um kami, ou deus, de nome Susanoo, poema esse que terá sido composto no dia do seu casamento com a princesa Kushinada. É clara a dose mitológica que se injecta na explicação deste poema, mas é graças a ela que, em tempos idos, os japoneses louvavam a poesia como uma criação de génese divina, uma arte fundada por um deus. Importa ainda referir que a antologia poética mais antiga que se conhece denomina-se Man'yoshu, e reúne poemas escritos entre os séculos VII e VIII. Além de versarem sobre o amor e as paisagens locais, surgem nela os primeiros poemas de crítica social.
O período seguinte, Nara, inicia-se quando a capital do país desloca-se para a cidade com esse mesmo nome, no ano de 710. O grande destaque deste período foi igualmente a maior influência recebida pelos poetas que o viveram: o contacto com a poesia chinesa, mais trabalhada e de maior rigidez formal do que aquela que à data os japoneses praticavam. Será escusado dizer que o impacto foi deveras considerável, elevando as matrizes da poesia japonesa para um novo patamar criativo. O primeiro poema que aqui partilhamos é da autoria de um dos poetas mais distintos deste período, pai daquele que assina o último poema dos quatro seleccionados. Se notarmos no elogio que faz às propriedades inebriantes do saké, e então nos recordarmos dos inúmeros poemas que os chineses dedicaram em louvor do vinho, com Li Bai à proa dessa inspirada multidão, não há como negar a concordância de um traçado claramente herdado de um povo um pouco mais desenvolto nas artes da escrita. O aprendiz, contudo, foi década após década abandonando o jugo suave do seu mentor, cuja ruptura acontece de modo completo aquando da chegada do haiku, prática poética da qual Bashô foi um mestre memorável.