quarta-feira, 15 de junho de 2016

RECÉM-CASADA AMARGA


Amarga recém-casada! Assim nasceu já.
Lábios ferinos, língua de ataque, quer é tumulto.
Maltrata as crianças. De pontapés enche o marido.
Levanta a voz, injuria
Quando lhe falam os sogros, não escuta ninguém.
Entrando na cozinha, enfurece-se, vira o mingau, derrota a sopa,
Lá vão pratos, e os potes - Ban! Lá vai o caldeiro, e a sertã,
A sua ira semelha a combate de búfalos, o riso, ranger de cremalheira.
Mas quanto a fazer rodopiar a saia, ou dar ao rabo,
Não tem igual neste mundo.
Transtornando, com ralhos, os sentimentos ancestrais, maltrata e vexa as cunhadas.
Quando se enfurece, com a sogra, nunca a boca fecha.
Bate com a cabeça, invocando céu e terra.
Faz de conta que se deita, finge estar doente p'ra não se erguer, 
Logo, vendo voltar o marido, de lágrimas tem os olhos cheios.
«Não te conto tudo, só digo isto:
Ambos me injuriam, tratam-me como escrava ou servente.»
Não pensa senão em reclinar-se, dormir
E se ninguém lhe dá o comer, levanta-se, picada pela fome.
A sogra diz ao filho: «Pede um respiro!
Depois que está aí a marafona, que fez ela por nós?».
O qual ouvindo, a recém-casada salta, pulando da cama:
«Por que razão no começo não mostravam tanto enfado?
Davam prendas, riqueza,

Foram buscar-me, fizeram-me vir - dizer agora que sou: Sei lá o quê!
Antes dos esponsais imploravam deuses e espíritos.
Agora que estou aqui, vede como falais de mim!».
A recém-casada pede então papéis de divórcio:
- Deixai-me ir, que me case de novo! Odiento me é tal marido.
Ouvindo dizer que pede divórcio, rejubilam os sogros:
Eh! Dar-te-emos vestes e objectos que vieram da casa tua; e mais
Faremos coberta nova p'ra tua cama.
E cominam, de ver abalar depressa, fazendo votos:
Nunca mais a ver ou encontrar.
Despede-se a recém-casada, a boca cheia embora de impropérios. Apre!
«Dinheiro, riquezas, e bens - que vão -, se me vir livre destas pestes.»




Poema de autor anónimo (China, Dinastia Dunhuang, sécs. V a X) (*)




(Tradução de Gil de Carvalho, a partir de uma versão em francês, in "Poemas Anónimos - Turcos, Mongóis, Chineses e incertos" - Assírio & Alvim, Janeiro de 2004).







(*) Apesar do nome do autor deste poema escrito quase em forma de crónica ter ficado perdido no tempo, o mesmo não deixa de nos oferecer, passados tantos séculos, um retrato curioso, original e até divertido de um episódio de vida familiar.

É claro que não dispomos de meios para atestar a veracidade do dito relato, sendo até provável que se trate de um produto de criação humana; contudo, a sua singularidade prende-se, obviamente, pela descrição da figura central do texto. Pois, como é sabido, a poesia chinesa preenche-se de retratos femininos sempre elaborados a partir do lado mais doce da mulher, a delicada amante ou aquela figura diligente que jamais descura os seus deveres como filha, esposa e mãe. É assim curioso verificar a radical inovação deste trabalho, dado o comportamento totalmente subversivo apresentado por tal personagem. Mesmo nos casos em que os poemas versavam sobre gueixas e demais concubinas, ou sobre a esposa maltratada e submissa, note-se como neste caso em concreto é a própria esposa que maltrata todos em seu redor, dona de uma agressividade passiva e de um ódio sem remédio. No entanto, e eis o mais interessante, a mesma, pela sua conduta, não encontra um desfecho que lhe seja favorável, já que os seus desejos lhe são amplamente atendidos. 
Talvez o poema não passe de um aviso direccionado a este tipo de mulher, mas, sendo assim, haverá certamente uma base real que sustentou a sua construção. De qualquer modo, é inegável a preciosidade do relato que até nossas mãos chegou. 
Sendo um texto de complexa tradução, apresenta-se a versão mais justa possível, sem que tal dificuldade retire o brilho ou a criatividade ao texto deveras bem-humorado. 












2 comentários:

  1. Ontem como hoje... seja na China ou cá, há situações idênticas. Vá que vistas pelo lado da comédia, até têm a sua graça; pelo da tragédia, fica-nos a angústia.
    O casamento, dizia a minha mãe,e uma carta tirada do baralho do jogo da vida.

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    1. Sem dúvida, D. Ester... Mas não deixa de ser um relato bem-humorado. Principalmente, lá está, para quem o não viveu! Além disso, a raridade de um texto assim naquela cultura acrescenta o merecido preciosismo ao trabalho em causa.
      Muito obrigado pela sua visita!
      Cumprimentos para vós.

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