quinta-feira, 30 de junho de 2016

CANÇÃO LVI


É Ele o verdadeiro místico(1)
quem pode revelar a forma do Informe 
à visão destes olhos;
quem ensina a descomplexa via de O alcançar,
essa outra que não os ritos ou as cerimónias;
quem não te instiga a fechar portas, 
a suster a respiração, a renunciar ao mundo;
quem te faz conhecer o Espírito Supremo
onde quer que a mente se apegue;
quem te ensina a permanecer sereno 
no centro de todas as tuas actividades.

Sempre imerso em êxtase, 
não abrigando o medo em Sua mente, 
mantém o espírito da unidade 
no centro de todos os deleites.

A morada eterna do Ser Eterno 
está em todo o lado: terra, água, céu e ar.
Resoluto como o relâmpago, 
o assento de quem busca
firma-se acima do vazio.

Aquele que está dentro fora está: 
apenas a Ele vejo, e nada mais.




Kabir (1440 - 1518) (*)


(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore ("Songs of Kabir", 1915)).



(1) A palavra original empregada por Kabir, e à qual recorre em inúmeras ocasiões ao longo das suas canções, é Sadhu. Embora tenha a sua origem no termo sädh, que significa "alcançar objectivos", a tradução literal de Sadhu é "bom homem". Contudo, no hinduísmo, é igualmente um termo bastante comum para designar um asceta, um praticante de ioga, um monge itinerante ou um místico. Em suma, alguém que percorre uma via de transcendência da matéria, visando assim a sua comunhão com o divino. Tendo em consideração o enquadramento do poema, optou-se pelo termo anteriormente enumerado em último lugar.


(*) Kabir será talvez um dos mais extraordinários e profundos místicos que a humanidade já conheceu. 
Poeta de muitos louvores, ainda que de linguagem simples, nasceu no seio de uma família de brâmanes hindus, tendo mais tarde contacto com as ideias e práticas religiosas muçulmanas. Segundo uma das muitas lendas criadas em torno desta figura, teria sido adoptado por uma família de tais crenças. Em todo o caso, é um facto que Kabir, mesmo tendo sido um discípulo, em sua juventude, de Ramananda, se tornaria um crítico de ambas as correntes. Afinal, um dos seus traços mais originais foi precisamente a independência de crenças pré-estabelecidas e da imposição dos seus rituais religiosos. Ao invés, propunha o conhecimento de Deus por via directa, isto é, através da simples vivência do quotidiano e de cada instante que o compõe. 
Kabir, além de poeta, foi um humilde tecelão - ofício que nunca abandonou enquanto viveu, mesmo contra os incessantes apelos dos seus discípulos mais íntimos, prontos a lhe conceder um modo de subsistência. Legou-nos não só as suas belíssimas canções plenas de transcendência, que em 1915 chegaram ao ocidente por meio do igualmente notável poeta indiano Tagore, como uma voz límpida e subversiva, à época, na sua fluidez penetrante - uma voz que advogava o divino de modo absoluto, além de qualquer religião instaurada pelo Homem, e a vida como uma comunhão perene entre a alma individual e a alma universal (a gota de água, no fundo, e o oceano que em nada são diferentes). 
Quando faleceu, o seu corpo foi disputado por muçulmanos e hindus. Após um tempo de discórdia e ponderação (note-se que os hindus queimam os corpos dos seus defuntos e os muçulmanos enterram-nos), quando um veredicto foi alcançado representantes de ambas as facções abriram o seu caixão e nada lá encontraram a não ser um imenso ramo de flores. Reza a lenda que o seu corpo não mais foi visto. Que centelha de verdade residirá nesta história?















quarta-feira, 15 de junho de 2016

RECÉM-CASADA AMARGA


Amarga recém-casada! Assim nasceu já.
Lábios ferinos, língua de ataque, quer é tumulto.
Maltrata as crianças. De pontapés enche o marido.
Levanta a voz, injuria
Quando lhe falam os sogros, não escuta ninguém.
Entrando na cozinha, enfurece-se, vira o mingau, derrota a sopa,
Lá vão pratos, e os potes - Ban! Lá vai o caldeiro, e a sertã,
A sua ira semelha a combate de búfalos, o riso, ranger de cremalheira.
Mas quanto a fazer rodopiar a saia, ou dar ao rabo,
Não tem igual neste mundo.
Transtornando, com ralhos, os sentimentos ancestrais, maltrata e vexa as cunhadas.
Quando se enfurece, com a sogra, nunca a boca fecha.
Bate com a cabeça, invocando céu e terra.
Faz de conta que se deita, finge estar doente p'ra não se erguer, 
Logo, vendo voltar o marido, de lágrimas tem os olhos cheios.
«Não te conto tudo, só digo isto:
Ambos me injuriam, tratam-me como escrava ou servente.»
Não pensa senão em reclinar-se, dormir
E se ninguém lhe dá o comer, levanta-se, picada pela fome.
A sogra diz ao filho: «Pede um respiro!
Depois que está aí a marafona, que fez ela por nós?».
O qual ouvindo, a recém-casada salta, pulando da cama:
«Por que razão no começo não mostravam tanto enfado?
Davam prendas, riqueza,

Foram buscar-me, fizeram-me vir - dizer agora que sou: Sei lá o quê!
Antes dos esponsais imploravam deuses e espíritos.
Agora que estou aqui, vede como falais de mim!».
A recém-casada pede então papéis de divórcio:
- Deixai-me ir, que me case de novo! Odiento me é tal marido.
Ouvindo dizer que pede divórcio, rejubilam os sogros:
Eh! Dar-te-emos vestes e objectos que vieram da casa tua; e mais
Faremos coberta nova p'ra tua cama.
E cominam, de ver abalar depressa, fazendo votos:
Nunca mais a ver ou encontrar.
Despede-se a recém-casada, a boca cheia embora de impropérios. Apre!
«Dinheiro, riquezas, e bens - que vão -, se me vir livre destas pestes.»




Poema de autor anónimo (China, Dinastia Dunhuang, sécs. V a X) (*)




(Tradução de Gil de Carvalho, a partir de uma versão em francês, in "Poemas Anónimos - Turcos, Mongóis, Chineses e incertos" - Assírio & Alvim, Janeiro de 2004).







(*) Apesar do nome do autor deste poema escrito quase em forma de crónica ter ficado perdido no tempo, o mesmo não deixa de nos oferecer, passados tantos séculos, um retrato curioso, original e até divertido de um episódio de vida familiar.

É claro que não dispomos de meios para atestar a veracidade do dito relato, sendo até provável que se trate de um produto de criação humana; contudo, a sua singularidade prende-se, obviamente, pela descrição da figura central do texto. Pois, como é sabido, a poesia chinesa preenche-se de retratos femininos sempre elaborados a partir do lado mais doce da mulher, a delicada amante ou aquela figura diligente que jamais descura os seus deveres como filha, esposa e mãe. É assim curioso verificar a radical inovação deste trabalho, dado o comportamento totalmente subversivo apresentado por tal personagem. Mesmo nos casos em que os poemas versavam sobre gueixas e demais concubinas, ou sobre a esposa maltratada e submissa, note-se como neste caso em concreto é a própria esposa que maltrata todos em seu redor, dona de uma agressividade passiva e de um ódio sem remédio. No entanto, e eis o mais interessante, a mesma, pela sua conduta, não encontra um desfecho que lhe seja favorável, já que os seus desejos lhe são amplamente atendidos. 
Talvez o poema não passe de um aviso direccionado a este tipo de mulher, mas, sendo assim, haverá certamente uma base real que sustentou a sua construção. De qualquer modo, é inegável a preciosidade do relato que até nossas mãos chegou. 
Sendo um texto de complexa tradução, apresenta-se a versão mais justa possível, sem que tal dificuldade retire o brilho ou a criatividade ao texto deveras bem-humorado.