segunda-feira, 23 de maio de 2016

JULGAMENTO


Não julgues...
Habitas num recanto mínimo desta terra.
Os teus olhos chegam
Até onde alcançam muito pouco...
Ao pouco que ouves
Acrescentas a tua própria voz.
Mantém o bem e o mal separados, o branco e o negro,
Cuidadosamente separados.
Em vão traças uma linha
Para estabelecer um limite.

Se houver uma melodia escondida no teu interior,
Desperta-a quando percorreres o caminho.
Na canção não há argumento,
Nem o apelo do trabalho...
A quem lhe agradar responderá,
A quem lhe agradar não ficará impassível.
Que importa que uns homens sejam bons
E outros não o sejam?
São viajantes do mesmo caminho.
Não julgues,
Ah, o tempo voa
E toda a discussão é inútil.

Olha, as flores florescem à beira do bosque,
Trazendo uma mensagem do céu,
Porque é um amigo da terra;
Com as chuvas de Julho
A erva inunda a terra de verde,
E enche a sua taça até à borda.
Esquecendo a identidade,
Enche o teu coração de simples alegria.
Viajante,
Disperso ao longo do caminho,
O tesouro amontoa-se à mediada que caminhas.



Rabindranath Tagore (1861 - 1941)




(Tradução de José Agostinho Baptista in "Poesia - R. Tagore", Assírio & Alvim, 2004).












quarta-feira, 18 de maio de 2016

Quatro poemas de Dogen


I. 

As ondas recuam.
Nem mesmo o vento
segura um pequeno
barco abandonado.

A lua é um claro
sinal da meia-noite.


II.

Aves marítimas, 
em constante partida e chegada.

Os rastos desaparecem,
mas jamais elas
esquecem o seu rumo.


III.

Ao vento da primavera,
flores de pessegueiro
começam por cair.

As dúvidas não se adornam
de ramos e folhas.


IV.

Uma garça-real,
branca, esconde-se
num campo coberto de neve,
onde nem as ervas de inverno
podem ser vistas.


Eihei Dogen (1200 - 1253)




(Tradução e adaptação de versões em inglês por Pedro Belo Clara).








quinta-feira, 12 de maio de 2016

Três breves poemas de Li Shang-Yin


I. Exílio

Um dia de primavera no fim do mundo.
No fim do mundo, de novo o dia passa.
O melro chora, como se fossem as suas lágrimas
Que molham os ramos cimeiros das árvores.


II. Dia após dia

Dia após dia, a glória da primavera rivaliza com a glória do sol.
As estradas que serpenteiam até à cidade na colina cheiram a flores    [de amendoeira.
Quanto tempo até que os fios do coração, livre de cuidados,
Flutuem, como a alfazema, por longa distância.


III. Os túmulos Lo-Yu

Com sombras de crepúsculo no coração,
Passeio por entre os túmulos Lo-Yu
Para ver o sol, em toda a sua glória,
Sepultado pela noite que chega.


Li Shang-Yin (812? - 858) (*)




(Tradução de José Alberto Oliveira em "Chuva na Primavera e Outros Poemas", Assírio & Alvim, 2001)







(*) Li Shang-Yin viveu nas décadas finais da dinastia Tang, período áureo da poesia chinesa, ou não desse ela a conhecer o trabalho de figuras como Li Bai, Wang Wei ou Du Fu - simplesmente os maiores nomes de sempre da história poética chinesa. Apesar de tudo, a época que a vida do poeta hoje proposto atravessou ficou marcada por diversas incidências políticas, ainda no rescaldo na revolta de An Lushan. Era o tempo dum nítido declínio, tanto político como económico, da outrora majestosa dinastia.

Ao serviço da corte imperial, o poeta alcançou um sucesso moderado no desempenho das suas funções. Nunca um alto cargo lhe fora outorgado, mas não se pense que tal se ficou a dever às parcas qualidades e competências deste inspirado artista. Disputas faccionais sempre impediram que tal acontecesse, bem como a sua associação a Liu Fen, um oponente político de destaque à época.
Contudo, e à semelhança dos grandes poetas que laurearam o período em causa, Li Shang-Yin não defraudaria os registos daquela gloriosa era para a literatura chinesa. Dono de uma voz intensamente original, a sua poesia é essencialmente adornada por elementos meramente alusivos, um cariz marcadamente abstracto que torna cada poema seu um autêntico desafio de tradução. As implicações filosóficas que muitos apresentam, bem como biográficas e até da actualidade política de então, transmitidas muitas vezes por meios obscuros, só incrementam essa dificuldade. 
Ao nível das temáticas, tanto os aspectos românticos da existência, a sátira e o humor foram alvo do seu trabalho. As imagens densas e, como dissemos antes, amplamente abstractas ainda hoje assombram qualquer conterrâneo seu. 
Apesar de poder ser considerado um "poeta difícil", Li Shang-Yin foi sem dúvida um autor diversificado e capaz de produzir poemas em diferentes estilos. A título de exemplo, como que atestando a qualidade do seu trabalho, os "poemas sem título" são hoje considerados pela crítica competente como "pura poesia". Durante o século XX foi, por tudo isto, um dos poetas mais amplamente redescobertos pelo leitor chinês, considerando também a modernidade de certas técnicas suas de produção poética.
A selecção aqui reproduzida, contudo, graças à sua brevidade, permite somente um mergulhar nas imagens poéticas produzidas sem grande dificuldade de entendimento. Um modo acessível, assim nos pareceu, de introduzir a leitura deste talentoso poeta.  








terça-feira, 10 de maio de 2016

INTERMINÁVEL AMOR



Parece-me que te amei de inúmeras maneiras, inúmeras vezes, 
Na vida após vida, em eras após eras eternamente. 
O meu coração enfeitiçado fez e voltou a fazer o colar das canções
Que tomaste como uma prenda, usando-o à volta do pescoço de    [tantas e tantas formas.

Na vida após vida, em eras após eras eternamente. 
Sempre que oiço as antigas crónicas do amor, a sua antiga dor, 
O seu antigo conto de estar só ou acompanhado, 
Quando contemplo o passado, no fim tu apareces 
Vestida com a luz da Estrela Polar que trespassa a escuridão do    [tempo: 
Tornas-te uma imagem do que é recordado sempre.

Tu e eu flutuámos aqui na corrente que traz da nascente 
Para o coração do tempo o amor de um pelo outro. 
Representámos lado a lado milhões de amantes, partilhando 
A mesma tímida doçura do encontro, as mesmas amarguradas    [lágrimas do adeus - 
Antigo amor, mas renovando-se e renovando-se sempre.

Hoje ele acumulou-se aos teus pés, encontrando o seu fim em ti, 
O amor de todos os dias, de todos os homens, do passado e de    [sempre: 
Universal Alegria, universal mágoa, universal vida, 
As recordações de todos os amores surgindo com este nosso amor - 
E as canções de todos os poetas do passado e de sempre.




Rabindranath Tagore (1861 - 1941) (*)



(Tradução de José Agostinho Baptista, "Poesia, Rabindranath Tagore", Assírio & Alvim, 2004).




(*) Tagore é certamente um dos poetas mais inspirados que a Índia conheceu. Terá começado a sua actividade artística com apenas oito anos de idade. Aos dezasseis publicaria o primeiro livro, mas sob pseudónimo. 
Nascido em Calcutá, no seio duma família abastada, estudou Direito em Inglaterra antes de regressar às origens para administrar as propriedades do seu pai. Vivendo de perto todos os tumultos que aquele país atravessou na conquista da sua independência do domínio britânico, acabou por tomar partido em diversas iniciativas nacionalistas. Em 1920, inclusive, chega a liderar o movimento de libertação indiano após a morte de Tilak, o anterior líder.
Além do exposto, a sua vida preencheu-se de viagens em torno do mundo e de encontros com personalidade de proa na época, como Einstein ou Gandhi. Terá até sido Tagore quem apelidou este último de "Mahatma", ou seja, "Alma Grande", fruto da profunda admiração que por ele nutria. 
Fundou também uma instituição de ensino com orientação filosófica. Contudo, a sua vida familiar registaria diversos abalos, dado que poucos indivíduos, em vida, terão assistido à morte de três filhos e do seu único neto.
Se a sua prosa inclina-se mais para assuntos de índole humanista, a poesia de Tagore exala uma voz deveras original e marca-se, essencialmente, por uma busca pelo transcendente e por uma ânsia profunda de comunhão com o divino. Dotada de uma musicalidade ímpar, não fosse Tagore também um músico, os seus versos amiúde se perfumam por uma aguçada sensibilidade e apelo ao belo. O lirismo dos mesmos e uma intensa noção contemplativa são, assim, dois factos inegáveis a ela inerentes. 
Escreveu o hino nacional de dois países, Índia e Bangladesh. Mais tarde na sua vida dedicou-se à pintura. Ao nível artístico, concretizou profundas reformas na arte bengali graças à sua visão e abordagem inovadoras, com as quais rompeu as rígidas estruturas clássicas então vigentes.
Foi Prémio Nobel da Literatura em 1913, o primeiro asiático a receber essa honra. Anos depois, rejeitaria o título de "Sir", outorgado pela coroa britânica, como protesto contra a ocupação inglesa no território. 
Faleceu em 1941, nove anos antes da Índia ser proclamada República.