terça-feira, 26 de abril de 2016

Quatro poemas espirituais de Dogen (Parte II)



I. O som das gotas de chuva em Ching-Ch'ing

Porque a mente é livre 
- escutando a chuva
tombando pelos beirais,
as gotas e eu
tornamo-nos um só.


II. No ribeiro

No ribeiro,
correndo apressado
para o mundo poeirento,
a minha efémera forma
não deixa reflexo.


III. Como cabelo emaranhado

Como cabelo emaranhado:
a ilusão circular
de começo e fim.
Quando esticado,
o sonho cessa.


IV. O verdadeiro ser manifesta-se pelos dez quartos do mundo

O verdadeiro ser
não é alguém em particular. 
Como o profundo azul 
do céu infinito,
é toda a gente, em todo o lugar
do mundo.




Eihei Dogen (1200 - 1253)




(Tradução e adaptação de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa elaborada por Steven Heine - "The Zen Poetry of Dogen: Verses from the Mountain of Eternal Peace", 1997)










sábado, 16 de abril de 2016

Quatro poemas espirituais de Dogen


I. Indo ou vindo? 

A ave migratória
não deixa rasto,
nem de guia necessita.



II. Zazen (1)

A lua reflecte-se
nas águas serenas:
até as ondas, quebrando-se,
espelham a sua luz.
Assim a mente silenciosa.



III. Prodigiosa mente-nirvana (2)

Porque as flores que brotam
no nosso lar de origem
são eternas,
mesmo com o suceder das primaveras
as suas cores jamais se desvanecerão.



IV. Impermanência

A que poderei eu
comparar o mundo?
Ao luar reflectido
em gotas de orvalho,
agitando-se num gerânio. 



Eihei Dogen (1200 - 1253) (*)




(Tradução e adaptação de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa elaborada por Steven Heine - "The Zen Poetry of Dogen: Verses from the Mountain of Eternal Peace", 1997)






(1) Zazen: Prática do budismo zen que consiste essencialmente numa meditação sem foco em concreto e de imobilidade corporal absoluta, por forma a promover o relaxamento e a aquietação do fluxo mental do ser. Este modo de "simplesmente sentar" é encarado nesta filosofia como uma via extremamente válida para se alcançar o estado de iluminação, o satori, dado que estimula o desapego e a auto-vigilância naquele que o praticar, tornando-o assim um ser mais alerta e consciente.  



(2) Nirvana: O mesmo que satori, a suprema transcendência do ego (a falsa identidade do ser) e do mundo da matéria - nos quais se inclui, como consequência, o desapego dos sentidos, emoções e pensamentos. Um estado superior da evolução humana, por outras palavras.




(*) Dogen foi um mestre da vertente zen do budismo e um poeta de excelência. 
Nascido em Quioto, Japão, no seio de uma família nobre, cedo experimentou as cruas ocorrências da via material. Órfão desde tenra idade, aproveitou do melhor modo o impulso do profundo abalo emocional que sobre ele se abatera, e com apenas treze anos entra no mosteiro onde será ordenado monge budista.
O seu carácter indagador levou-o várias vezes em busca da verdade suprema, algo que fez com que entrasse e saísse de vários mosteiros, experimentando diversas escolas do budismo até instaurar ele próprio a sua, de nome Soto, após o contacto, na China, com o mestre que certamente mais lhe marcou: Rujing. 
Naturalmente, o seu pensamento, fundado na tradição zen, bem como os ensinamentos que transmitia aos seus discípulos, acabou reflectido na poesia que amiúde escrevia. Chegam-nos assim diversos poemas de grande teor espiritual, cujas imagens esforçam-se muito serenamente por estimular no seu leitor vislumbres do Eterno - ou simplesmente evidências da vida material que atestem a sua efemeridade e, por isso, secretamente impulsionem uma busca por algo de maior constância. 
Os exemplos seleccionados irão certamente atestar tal sentença.