quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Cinco aforismos de R. Tagore (3)


I.

A vida faz soar através das hastes das ervas
um silencioso hino de louvor
à inominável Luz.


II.

As estrelas da noite são para mim
os sinais das flores mortas do meu dia.


III.

O verdadeiro fim não está no atingir o limite,
mas sim em chegar ao ilimitável.


IV.

O mundo interior cresceu em mim como um fruto,
amadureceu em alegria e mágoa
e cairá para dentro da escuridão do chão original
para mais um ciclo de criação.


V.

Há buscadores de sabedoria e buscadores de riqueza;
eu procuro a Tua presença
para que possa cantar.





Rabindranath Tagore (1861 - 1941)







(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Joaquim M. Palma in "A Asa e a Luz" (Assírio & Alvim, 2016)).








sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Quatro poemas de Ishikawa Takuboku


I.

De certo modo,
é como visitar o sepulcro 
de um primeiro amor
- este viver nos subúrbios.


II.

Renunciei ao mundo,
tão cheio de mácula.
E no entanto não há
outro lugar aonde ir.


III.

De súbito desperto,
cerrei os olhos, aliviado,
pensando na escuridão
no fim do meu sonho.


IV.

Como uma pedra,
rolando colina abaixo
- assim cheguei
ao dia de hoje.



Ishikawa Takuboku (1885 - 1912) (*)


(Versões de Pedro Belo Clara a partir das versões em inglês de Sanford Goldstein e Sheishi Shinoda, em "Sad Toys" (2000)). (**)





(*) Ishikawa Hajime nasceu em 1885 na província de Iwate, Japão, filho primogénito de um abade de templo budista. Publica na juventude alguns trabalhos sob o pseudónimo Hakuhin, o primeiro aos dezassete anos de idade, até por fim decidir-se por aquele que o imortalizará: Ishikawa Takuboku (Takuboku, curiosamente, significa "Pica-Pau").
Foi um ensaísta e poeta de grande renome no seio de um Japão que vivia intensas agitações sociais, tendo mesmo assistido ao início de uma guerra contra a Rússia. Contudo, há quem o veja como um novelista falhado, dado a pouca atenção que o público dedicou a esses seus projectos. No entanto, para a maioria, será mesmo um dos grandes mestres do tanka no país, apesar de o próprio ter confessado, em cartas e diários, o seu desprezo por essa forma literária - que até compunha com relativa frequência, facilidade e fluidez. Homem de grandes ideais, considerava o seu trabalho escrito como uma potente arma de intervenção social. Diria, a respeito: «O que eu procuro na literatura é o seu poder crítico». Terá sido provavelmente essa base ideológica que o levou a abandonar a escola do Naturalismo em prol do Socialismo, erguida ao patamar de "mote de vida" quando um grupo de simpatizantes desse modelo político foi condenado à morte pelo regime imperial vigente.
Os poemas que hoje aqui partilhamos foram todos retirados da obra Kanashiki Gangu ("Sad Toys", "Brinquedos Tristes"), um conjunto de 194 tanka publicado postumamente, em 1912. O nome escolhido é deveras interessante e significativo, dado que Takuboku considerava os tanka os seus "brinquedos tristes". E por uma dupla razão: por só os escrever quando assim se sentia e por considerá-los absolutamente inúteis para o bem da sociedade. Por isso o seu amigo e poeta Toki Aika, encarregado de os reunir e publicar, se decidiu por esse curioso título. Foi o seu segundo livro do género, depois de Ichiaku no suna, "Uma mão cheia de areia" (1910).
Por algumas das circunstâncias que já referimos, bem como pela proximidade da data do seu falecimento, este "Brinquedos Tristes" é um livro de carácter bastante pessimista e decadente, onde ao invés de se ocupar com questões ideológicas e sociais, o poeta vira o foco da atenção para a sua própria existência, conferindo à obra um vincado cariz intimista. Os poemas exalam uma melancolia obscura deveras inegável, uma desolação niilista, um negrume palpitante vivendo em cada verso lido. Na verdade, muitos dos poemas foram escritos durante o seu último ano de vida, um período que assinalou a morte da sua mãe, diversos conflitos com a restante família e amigos e episódios de uma notável pobreza material. Existiu ainda uma tentativa de assassinato do Imperador do Japão, sucedido esse que motivou Takuboku a mergulhar com afinco no seu trabalho literário por forma a poder contribuir para uma reforma social no país, mas a mesma doença que havia ceifado a vida da sua mãe, a tuberculose, e que viria a ceifar a de sua esposa no ano seguinte à sua morte, acabaria por pôr um fim aos seus planos quando tinha apenas vinte e seis primaveras vividas.
Na praia de Oomori, em Hakodate, lugar cuja beleza encantara o poeta, ergueu-se uma estátua em sua memória.


(**) Note-se que os poemas referidos são, para todos os efeitos, tanka, embora não estejam na sua tradução transpostos para os pressupostos dessa forma (cinco versos), que entretanto perdera a sua rigidez estilística nos tempos de Takuboku. Na verdade, a versão inglesa optou por não mantê-los, e até se compreendem as razões, dado que o autor era também ele versado num modo mais livre (jiyushi) de escrever poesia e tornou-se um dos reformuladores do tanka. Assim sendo, seguiu a versão portuguesa o mesmo caminho trilhado pelos seus tradutores ingleses, embora para beneficiar o ritmo dos poemas apresentados se tenha adoptado um diferente arranjo (em quadra). 









terça-feira, 29 de novembro de 2016

Cinco aforismos de R. Tagore sobre o Amor e as suas diferentes faces


I.

O orgulho grava as suas máscaras em pedra,
o amor rende-se oferecendo flores.


II.

O amor é um mistério infinito,
pois ele nada tem para explicar.


III.

O amor continua a ser um segredo
mesmo quando se fala dele,
pois só o verdadeiro amante sabe que é amado.


IV.

No abundante tempo das rosas, o amor é vinho;
é alimento para a fome na altura
na altura em que as suas pétalas se desprendem.


V.

As nuvens, tristes por estarem na escuridão,
esquecem-se que também elas
esconderam, de dia, o sol.






Rabindranath Tagore (1861 - 1941)





(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Joaquim M. Palma in "A Asa e a Luz" (Assírio & Alvim, 2016)).












segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Cinco poemas (Tanka) de Wakayama Bokusui


I.

Hoje, como sempre,
tal qual um peregrino obsessivo, 
continuo a caminhar, sempre em frente,
batendo uma e outra vez
o gongo budista do meu coração.


II.

Pergunto-me: quantas mais 
montanhas e rios terei de atravessar
até atingir o lugar onde a solidão
enfim termina? A viagem começa,
novamente.


III.

Assim que adormeces,
a noite, tão mal iluminada,
vai-se tornando gentilmente
fragrante, como uma flor
de citrus-tachibana. (*) 



IV.

A alguma distância, trovões 
rugem como deuses. No entanto, 
aqui a chuva não chega - debaixo 
das nuvens carmesins do ocaso
continuo só, aquecendo sake. (**) 



V.

As folhas das palmeiras 
florescem, assim como a canola;
e as espigas de trigo balançam, 
resplandecem, ondulam, reverberam
- que longo, longo dia.




Wakayama Bokusui (1885 - 1928)


(Versões de Pedro Belo Clara a partir das traduções em inglês de Gregory Dunne e Goro Takano)






(*) Mesmo arriscando a diminuição da beleza poética do texto, optou-se por manter o nome científico na árvore em causa, tal como figura na tradução inglesa, por não existir na língua portuguesa uma tradução exacta. A citrus-tachibana é um citrino bastante parecido com a tangerina, também ela um fruto nativo da Ásia, mas não é comestível. Por esse motivo, as traduções mais aproximadas, como "tangerina" ou "laranja-mandarim", tornar-se-iam muito pouco exactas. Este fruto cresce de modo selvagem no seu espaço natural, o território do Japão, e só poderemos imaginar como o aroma das suas flores se assemelha ao das tangerineiras que tão bem conhecemos.


(**) Bebida alcoólica japonesa feita a partir da fermentação do arroz, após passar por um processo de remoção dos seus óleos e proteínas naturais. Tradicionalmente bebe-se à temperatura de 35º C, embora não de modo exclusivo, já que consoante as temperaturas em que for consumido o sake adquire diferentes sabores. 






(A estátua do poeta, no parque cultural de Miyazaki)




terça-feira, 15 de novembro de 2016

Três poemas no estilo Tanka, de Wakayama Bokusui (Período Moderno, desde 1868) (*)


I.

Como está desamparado
o pássaro branco!
O céu e o mar ambos azuis:
ele paira contudo entre eles
sem se tingir da sua cor.


II.

A colina adormecida:
a seus pés 
o mar dormindo:
através da primavera abandonada
prossigo a minha viagem.


III.

A meu lado
as flores das ervas do outono
murmuram baixinho:
«Como me são queridas
todas as coisas que morrem».



Wakayama Bokusui (1885 - 1928) (**)





(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Luís Pignatelli, in "A Pedra-que-mata, Poesia Japonesa" - Língua morta, 2016)









(*) O Tanka, estilo poético japonês que face à massiva prática e divulgação do Haiku parece actualmente adormecido entre os registos literários que chegam e se praticam no Ocidente, tem o seu apogeu entre os séculos VI e VIII. Originalmente, era a forma mais comum utilizada pelas mulheres cultas da corte japonesa para registarem a sua arte. A partir dela nasceriam outros estilos de igual fama, como a Renga ou o próprio Haiku.
Significa, literalmente, "poema curto" e compõe-se por cinco versos que, respectivamente, obedecem ao seguinte esquema: 5 - 7 - 5 - 7 - 7, divididos por duas estrofes (5 - 7 - 5 // 7 - 7) No total, o poema perfaz trinta e uma sílabas. Posteriormente, cada estrofe seria composta por autores diferentes, sendo que dois seria sempre o número necessário de poetas para criar um tanka (algures entre os séculos XII e XIV). Mais tarde, já em pleno amadurecimento do século XIX, as temáticas geralmente retratadas nestes poemas sofrem a consequência do minimalismo então crescente, algo que se adequa perfeitamente a um estilo de poema que desde o berço se quer "curto".


(**) Wakayama destacou-se como um autor de tankas de inclinação naturalista, tendo vivido o período por excelência da ressurreição deste estilo, levado a cabo pelo também poeta e ensaísta Yosano Tekkan. Publicou o seu primeiro livro em 1908, e durante a sua vida, um pouco à semelhança do mestre do haiku Matsuo Bashô, realizaria diversas viagens pelo Japão e Coreia, à época sobre o domínio imperial dos nipónicos. Por isso, é fácil constatar que em sua obra os lugares que lhe calhava visitar são maioritariamente descritos na sua fisionomia e recorte paisagístico, algo que na mostra poética de hoje se poderá verificar de um claro modo. Possuía um profundo amor pelo sake, de tal modo sólido que o seu pobre fígado não aguentaria as intensidades dessa tamanha paixão, vindo a falecer aos quarenta e três anos de idade, provavelmente ainda com inúmeros tankas a implorar o seu nascimento. Antes da sua morte, terá escrito o seguinte haiku: «Uma palavra de despedida? / A neve que derrete / não tem odor».








Wakayama Bokusui (1885 - 1928)






sexta-feira, 4 de novembro de 2016

CANÇÃO III


Amigo: espera-O enquanto vives,
conhece e compreende
enquanto vives - pois na vida
reside a libertação.

Se os teus laços não forem quebrados
enquanto vives,
que esperança de libertação
haverá na morte?

Não passa dum sonho vazio,
esse de a alma com Ele 
ter a sua união apenas por do corpo 
se ter desprendido.

Se agora Ele for encontrado,
será encontrado depois;
se assim não for, teremos
morada na cidade da morte.

Mas se tiveres a tua união agora
é certo que tê-la-ás depois.

Banha-te na Verdade, 
conhece o verdadeiro Guru (1),
cultiva a fé no verdadeiro Nome!

Kabir afirma: Quem auxilia
é o Espírito da Busca,
e eu sou um servo seu. 




(1) Do sânscrito "Mestre".







Kabir (1440 - 1518)




(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, em "Songs of Kabir" - 1915).












quarta-feira, 26 de outubro de 2016

CANÇÃO IV (*)


Não vás ao jardim florido:
amigo, não vás.
Em ti mesmo reside esse jardim.

Toma o teu lugar no seio 
de milhares de pétalas de lótus,
e daí contempla a Beleza Infinda.




Kabir (1440 - 1518)




(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, em "Songs of Kabir" - 1915).





(*) Apesar de breve, esta canção/poema de Kabir encerra uma enorme significância. Desde logo por se tratar de um apelo indirecto à meditação. Repare-se, portanto, como serenamente instiga o leitor a abandonar a busca exterior e a centrar-se dentro do seu próprio ser, a visitar o seu próprio jardim interior.  Depois, pelo recurso à imagem do lótus. Como é sabido, é uma imagem de enorme carga espiritual, utilizada tanto por budistas como por hindus, que representa, sumariamente, o florescimento espiritual do Homem ou, em alternativa, o seu potencial florescimento espiritual. Note-se que a dita flor finca as suas raízes na lama, muitas vezes considerada como uma metáfora do efémero ou do mundo da matéria, e ainda assim, quando desabrocha, brinda o mundo com a sua beleza ímpar. Ou seja, mesmo tendo um corpo, mesmo correndo o risco de se perder em ilusões (as armadilhas de Maya), o Homem encerra em si esse potencial extraordinário: a hipótese de se tornar um ser veramente iluminado, transcendente, uma janela aberta ao Divino. Sabemos que Kabir teve contacto directo com o pensamento e as práticas hindus e muçulmanas, mas é igualmente provável que a doutrina budista tenha chegado ao seu conhecimento. Pois a imagem que o último terceto sugere lembra uma em que o próprio Buda surge por diversas vezes ilustrado: em profunda meditação no centro de uma imensa flor de lótus (ver abaixo). A imagem não é exclusiva do budismo, diga-se, mas não deixa de ser possível a sua associação, pelo que agora se poderá interpretar toda esta canção/poema como um convite à vivência do próprio estado de Buda - o florescimento do lótus que em semente todo o Homem traz ao peito.








terça-feira, 18 de outubro de 2016

CANÇÃO IX


Como alguma vez poderei expressar
aquela palavra secreta?
Oh, como poderei dizer: Ele não é isto,
Ele é aquilo?

Se eu disser que Ele está em mim,
então o universo será desonrado.
Se eu disser que Ele está fora de mim,
então a falsidade cobrir-me-á.

Ele faz com que o mundo interior e exterior
se tornem indivisíveis;
o consciente e o inconsciente
são ambos os Seus escabelos.

Ele não é manifesto nem oculto,
Ele não é revelado nem está por revelar.

Não existem palavras que digam
aquilo que Ele é.




Kabir (1440 - 1518)




(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, em "Songs of Kabir" - 1915).








quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Cinco aforismos de R. Tagore (2)


I.

O homem é uma criança que nasceu, e o seu único poder é o poder de crescer.


II.

O peixe é silencioso na água; o animal é ruidoso em terra; o pássaro é cantor no ar.
Mas o homem tem em si o silêncio do mar, o alvoroço da terra e a música do ar.


III.

Deus encontra-se a si mesmo ao criar.


IV.

Como o encontro das gaivotas e das ondas, assim nos encontrámos e nos unimos.
As gaivotas voam afastando-se sempre, as ondas vão rebentar bem longe, e nós partimos. 


V.

A vida foi-nos dada e nós, dando-a, a merecemos.







Rabindranath Tagore (1861 - 1941)






(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Joaquim M. Palma in "A Asa e a Luz" (Assírio & Alvim, 2016)).










quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Quatro poemas japoneses dos períodos primitivo e Nara (até 794 d.C.) (*)


ELOGIO DO SAKÉ


Será que uma jóia
brilhando na noite
pode dar tanto prazer
como beber o saké
que afasta os nossos cuidados?


(Ôtomo no Tabito, 665 - 731)




ESQUECIMENTO


À charneca da primavera
eu fui
colher violetas:
era tão doce a charneca
que lá dormi toda a noite.


(Yamabe no Akahito, 700 - 736)




Mil anos, disseste,
quando os nossos corações se fundiram.
Olho para a mão que seguraste
e a dor é difícil de suportar.


(Sra. Heguri, ? - ?)




AS DUAS FLORAÇÕES


No jardim da primavera,
vermelha, exala o seu perfume
a flor do pessegueiro:
e na vereda que ela ilumina,
uma rapariga imóvel.


(Ôtomo no Yakamochi, 718 - 785)






(Traduções de Luís Pignatelli, in "A Pedra-que-mata, Poesia Japonesa" - Língua morta, 2016)




(*) É bem provável que as origens da poesia japonesa se percam no tempo, embora a mais antiga referência sua date apenas do século VIII da nossa era. Se tomarmos o caso da poesia chinesa, por exemplo, onde subsistem trabalhos datados de um tempo antes de Cristo, podemos concluir que a obra dos seus vizinhos não possui, em termos escritos, uma antiguidade propriamente impressionante. No entanto, crê-se que essa primeira obra, o Kojiki, que compila pedaços da história japonesa bem como da sua peculiar mitologia, contém trabalhos que por gerações terão sido transmitidos por via oral. Tal terá acontecido não graças ao analfabetismo dos seus transmissores, mas por se remeterem a um tempo anterior ao uso da própria escrita. O waka, ou poema, mais antigo que se conhece encontra-se, como é óbvio, registado nesse livro, cuja autoria é atribuída a um kami, ou deus, de nome Susanoo, poema esse que terá sido composto no dia do seu casamento com a princesa Kushinada. É clara a dose mitológica que se injecta na explicação deste poema, mas é graças a ela que, em tempos idos, os japoneses louvavam a poesia como uma criação de génese divina, uma arte fundada por um deus. Importa ainda referir que a antologia poética mais antiga que se conhece denomina-se Man'yoshu, e reúne poemas escritos entre os séculos VII e VIII. Além de versarem sobre o amor e as paisagens locais, surgem nela os primeiros poemas de crítica social.
O período seguinte, Nara, inicia-se quando a capital do país desloca-se para a cidade com esse mesmo nome, no ano de 710. O grande destaque deste período foi igualmente a maior influência recebida pelos poetas que o viveram: o contacto com a poesia chinesa, mais trabalhada e de maior rigidez formal do que aquela que à data os japoneses praticavam. Será escusado dizer que o impacto foi deveras considerável, elevando as matrizes da poesia japonesa para um novo patamar criativo. O primeiro poema que aqui partilhamos é da autoria de um dos poetas mais distintos deste período, pai daquele que assina o último poema dos quatro seleccionados. Se notarmos no elogio que faz às propriedades inebriantes do saké, e então nos recordarmos dos inúmeros poemas que os chineses dedicaram em louvor do vinho, com Li Bai à proa dessa inspirada multidão, não há como negar a concordância de um traçado claramente herdado de um povo um pouco mais desenvolto nas artes da escrita. O aprendiz, contudo, foi década após década abandonando o jugo suave do seu mentor, cuja ruptura acontece de modo completo aquando da chegada do haiku, prática poética da qual Bashô foi um mestre memorável.













quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Cinco aforismos de R. Tagore


I.

São as lágrimas vertidas pela terra que alimentam o seu sorriso em flor.


II.

Se choras quando perdes o sol, perderás também as estrelas.


III.

Uma vez sonhámos que éramos estranhos.
E acordámos para descobrir que nos amávamos. 


IV.

O mistério da vida é como a escuridão da noite - grande.
A ilusão do saber é como a névoa do amanhecer.


V.

Aqueles que levam as lanternas atrás de si, lançam para a frente as suas sombras.





Rabindranath Tagore (1861 - 1941)





(Selecção de Pedro Belo Clara a partir das traduções de Joaquim M. Palma in "A Asa e a Luz" (Assírio & Alvim, 2016)).










terça-feira, 16 de agosto de 2016

CANÇÃO VI


A lua brilha em meu corpo,
mas meus cegos olhos 
não a conseguem ver.

(A lua está em mim, assim como o sol).

O intocável tambor da eternidade
tem em mim o seu som,
mas meus surdos ouvidos
não o conseguem escutar.

----------

Enquanto o homem reivindicar 
o "eu" e "meu",
suas obras serão nefastas.
Quando todo o amor 
pelo "eu" e "meu"
estiver morto, então
o trabalho divino será feito.

Pois tal obra não tem outro propósito
que não seja
a obtenção de conhecimento.

E quando este chega, 
o trabalho é abandonado.

----------

A flor desabrocha em nome do fruto.
Quando o fruto surge, a flor mirra.

O almíscar reside no veado,
mas este não o busca em si 

ele vagueia 
numa demanda por erva. 




Kabir (1440 - 1518)




(Versões de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa levada a cabo por Rabindranath Tagore ("Songs of Kabir", 1915)).















segunda-feira, 18 de julho de 2016

CANÇÃO XII


Conta-me, ó cisne, a tua história ancestral.
De que terra vens, ó cisne? Para que margem voas?
Onde terás o teu repouso, o que buscas tu?

Nesta manhã, ó cisne, desperta, ergue-te, segue-me!
Existe uma terra onde a dúvida e o arrependimento
não governam, onde o terror da Morte não mais subsiste.

Nela, os bosques em primavera florescem,
e o fragrante aroma que nasce da certeza
de Ele ser eu irrompe do vento.
Nela, o coração como abelha está profundamente 
imerso, não desejando outra alegria.




Kabir (1440 - 1518)






(Versão de Pedro Belo Clara a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore ("Songs of Kabir", 1915)).










sexta-feira, 15 de julho de 2016

CANÇÃO I


Oh servo, onde me buscas?
Observa! Estou junto a ti.

Não me encontrarás no templo nem na mesquita;
não estou na Caaba nem no Kailash (1),
nem nos ritos e nas cerimónias, 
ou no Yoga e na renúncia.

Se fores um verdadeiro indagador
de pronto verás, encontrar-Me-ás 
num instante de tempo.

Kabir afirma: Oh, aprendiz! 
Deus é o sopro de todos os sopros.




Kabir (1440 - 1518)


(Versão de Pedro Belo Clara a partir da versão inglesa de Rabindranath Tagore ("Songs of Kabir", 1915)).



(1) Caaba, "O Nobre Cubo", é uma construção ancestral que segue o rigor dessas formas geométricas. Encontra-se em Meca e é um objecto de veneração por parte dos devotos muçulmanos, já que alberga a "Pedra Negra", uma das relíquias mais sagradas do Islão. Por sua vez, Kailash é um monte situado no Tibete, local sagrado tanto para budistas como para hindus. O rio Ganges tem nele a sua nascente. Kabir, como se comprova, tenta aqui transcender os preceitos teóricos de ambas as religiões, com as quais privou de perto.